Queria voltar ao tempo em que nada me perturbava. Nada me fascinava tanto, nada se lamentava muito.
Queria chegar num tempo em que eu não mude, onde nada mude, nada se altere.
Um tempo onde o caos ocorre lentamente, aos sopros, aos passos, aos pedaços. Quero não pensar. Pousar.
Quero os segundos mais lentos, menos sangrentos, menos doídos.
Quero não amar. Tudo o que é quente esfria, tudo que é novo estraga e tudo o que queima se consome.
Já não sou.
E naquela manhã chovia. Gota a gota num ritimo frenético. Algumas gotas pesadas batiam contra o vidro da janela e escorriam formando caminhos lentos de suicídio. Também fazia frio.
Difícil levantar-se em um dia desses. Me levantei e a dor de viver me invadiu pela milésima vez, a dor de existir e enfrentar um mundo vazio me fazia viver menos.
Coloquei o velho roupão azul, há meses havia decidido comprar um novo mas ainda nada.
Um café com vista para o nada. Bebi olhando a janela, os carros passavam apressados fazendo um barulho cortante, as pessoas andavam debaixo de seus guarda chuvas trombando umas nas outras, os cães não passeavam.
O relógio ia convencendo as pessoas de que já era dia. Mais um.
Acendi um cigarro como forma de me atrasar mais um bocado, como se prolongasse o pouco tempo que ainda tinha dentro de meu casulo. Fiquei parada na janela, apoiei um dos joelhos na poltrona amarela e fiz de conta que nenhum compromisso me esperava. Fiquei assim por uma hora.
Respirei fundo e andei até a escrivaninha do canto da sala, peguei o telefone e liguei para o escritório. "Não vou hoje, ando doente".
Ando doente, muito doente. O mundo todo anda.
Fui até a cozinha e pela primeira vez notei como ela era clara, o piso todo branco se unia com as paredes feitas com um azulejo estranhamente parecido com o do chão. Nunca notara tamanha semelhança, tamanha falta de graça. Ao fundo o fogão e a pia com sempre meia dúzia de copos a serem lavados e uns tantos no escorredor. Tenho compulsão por bebida. Qualquer líquido. Ingerir apenas.
A lavanderia logo ao lado não escondia segredo algum, apenas uma bagunça desavergonhada.
Clara e sem graça, ali mesmo peguei um novo copo e o enchi de água e gelo, me encanta o gelo, sua forma tranquila de boiar na mesma água em que vai morrer. Me fascina seu estalar e sua lenta despedida.
Sentia-me estranha, mais estranha que o estranha de sempre, uma tontura e uma pressão nos ouvidos me deixavam surda por alguns momentos, sentia o corpo pesado, gordo, grande. As mãos tremiam como sempre e a boca secava mais a cada gole.
Sentia também um peso enorme entre as sobrancelhas, um peso bem no terceiro olho e a surdez aumentava o volume dos meus pensamentos.
Pensar me incomoda porque me rouba deste mundo.
Como todo ser que se sabota tentei curar meu mal com um novo cigarro, sentei na poltrona azul e fiquei olhando a fumaça pairar sobre o centro da sala.
Ainda me sentia mal, estranha, densa, me levantei buscar mais água e nesse mesmo instante caí. E o cair me revoltou, me senti besta, sonsa, me senti invadida e contrariada.
O peso do meio das sobrancelhas deu lugar à dor, senti a testa quente e úmida, senti cheiro de sangue. Doía.
E a dor alimenta.
Me sentei no braço da poltrona tampando com a mão o corte. Tive um súbito ataque de riso.
A maçaneta da porta girou, a faxineira invadia meu mundo.
"O que aconteceu com a senhora?"
"Nada não."
"Mas está sangrando!"
"Um tombo apenas, ando estabanada".
"Vai ter que dar ponto, deixa eu ver."
Ela olhava para meu rosto como se olhasse para uma lesma esmagada, aquela expressão indecifrável me fez levantar depressa.
"Vou lavar."
"A senhora não quer ajuda?"
"Não."
Queria chegar num tempo em que eu não mude, onde nada mude, nada se altere.
Um tempo onde o caos ocorre lentamente, aos sopros, aos passos, aos pedaços. Quero não pensar. Pousar.
Quero os segundos mais lentos, menos sangrentos, menos doídos.
Quero não amar. Tudo o que é quente esfria, tudo que é novo estraga e tudo o que queima se consome.
Já não sou.
E naquela manhã chovia. Gota a gota num ritimo frenético. Algumas gotas pesadas batiam contra o vidro da janela e escorriam formando caminhos lentos de suicídio. Também fazia frio.
Difícil levantar-se em um dia desses. Me levantei e a dor de viver me invadiu pela milésima vez, a dor de existir e enfrentar um mundo vazio me fazia viver menos.
Coloquei o velho roupão azul, há meses havia decidido comprar um novo mas ainda nada.
Um café com vista para o nada. Bebi olhando a janela, os carros passavam apressados fazendo um barulho cortante, as pessoas andavam debaixo de seus guarda chuvas trombando umas nas outras, os cães não passeavam.
O relógio ia convencendo as pessoas de que já era dia. Mais um.
Acendi um cigarro como forma de me atrasar mais um bocado, como se prolongasse o pouco tempo que ainda tinha dentro de meu casulo. Fiquei parada na janela, apoiei um dos joelhos na poltrona amarela e fiz de conta que nenhum compromisso me esperava. Fiquei assim por uma hora.
Respirei fundo e andei até a escrivaninha do canto da sala, peguei o telefone e liguei para o escritório. "Não vou hoje, ando doente".
Ando doente, muito doente. O mundo todo anda.
Fui até a cozinha e pela primeira vez notei como ela era clara, o piso todo branco se unia com as paredes feitas com um azulejo estranhamente parecido com o do chão. Nunca notara tamanha semelhança, tamanha falta de graça. Ao fundo o fogão e a pia com sempre meia dúzia de copos a serem lavados e uns tantos no escorredor. Tenho compulsão por bebida. Qualquer líquido. Ingerir apenas.
A lavanderia logo ao lado não escondia segredo algum, apenas uma bagunça desavergonhada.
Clara e sem graça, ali mesmo peguei um novo copo e o enchi de água e gelo, me encanta o gelo, sua forma tranquila de boiar na mesma água em que vai morrer. Me fascina seu estalar e sua lenta despedida.
Sentia-me estranha, mais estranha que o estranha de sempre, uma tontura e uma pressão nos ouvidos me deixavam surda por alguns momentos, sentia o corpo pesado, gordo, grande. As mãos tremiam como sempre e a boca secava mais a cada gole.
Sentia também um peso enorme entre as sobrancelhas, um peso bem no terceiro olho e a surdez aumentava o volume dos meus pensamentos.
Pensar me incomoda porque me rouba deste mundo.
Como todo ser que se sabota tentei curar meu mal com um novo cigarro, sentei na poltrona azul e fiquei olhando a fumaça pairar sobre o centro da sala.
Ainda me sentia mal, estranha, densa, me levantei buscar mais água e nesse mesmo instante caí. E o cair me revoltou, me senti besta, sonsa, me senti invadida e contrariada.
O peso do meio das sobrancelhas deu lugar à dor, senti a testa quente e úmida, senti cheiro de sangue. Doía.
E a dor alimenta.
Me sentei no braço da poltrona tampando com a mão o corte. Tive um súbito ataque de riso.
A maçaneta da porta girou, a faxineira invadia meu mundo.
"O que aconteceu com a senhora?"
"Nada não."
"Mas está sangrando!"
"Um tombo apenas, ando estabanada".
"Vai ter que dar ponto, deixa eu ver."
Ela olhava para meu rosto como se olhasse para uma lesma esmagada, aquela expressão indecifrável me fez levantar depressa.
"Vou lavar."
"A senhora não quer ajuda?"
"Não."
"Se houvesse apenas um único dia,
ResponderExcluirisso seria um best-seller,Mas os sentimentos não param..."
" Se houvesse apenas um dia isso seria um Best-seller, mas os sentimentos não param..."
ResponderExcluirÈ preciso uma ferida aberta, um corte na própria carne, um choque, um baque que te desperte, que te traga de volta a realidade, que te resgate do tua prisão, de teus tormentos e torturas.
ResponderExcluir